Teses Defendidas

O Touro que nos Puseram na Arena. Ou: O Desdobrar das Fronteiras nos Interstícios da Palavra - Gaguez, Ciência e Comunidades de Responsabilidades

Daniel Neves Costa

Data de Defesa
20 de Julho de 2017
Programa de Doutoramento
Governação, Conhecimento e Inovação
Orientação
João Arriscado Nunes
Resumo
As últimas décadas assistiram a uma intensa transformação das relações entre a ciência e a sociedade, entre a ciência e a política. O papel da ciência nas sociedades democráticas contemporâneas tem sido alvo de uma extensa problematização. Este trabalho visa refletir sobre o papel da ciência e seus conhecimentos não apenas na relação com as instituições políticas de tomada de decisão, mas na composição do mundo comum, da sociedade e suas instituições, no quotidiano dos cidadãos, na construção identitária de indivíduos e coletivos sociais ou na construção de narrativas políticas de interpelação social, seja no combate das desigualdades, na desconstrução de estigmas sociais ou na definição de ativismos terapêuticos associados a condições de saúde. Numa parceria levada a cabo com a Associação Portuguesa de Gagos esta investigação faz uma problematização das condições que permitam desenvolver colaborações entre cidadãos, comunidades e organizações da sociedade civil e cientistas, centros de investigação e universidades, numa lógica democrática de coprodução de conhecimento que fomente o empoderamento de indivíduos, comunidades e organizações da sociedade civil através de um envolvimento participado com a tecnociência e inspirado no conceito de "Investigação e Inovação Responsáveis" (von Schomberg, 2011).

Nesse sentido, problematizamos o desenho e implementação de dispositivos de indagação (Dewey, 1938) que se constituem como os espaços de fronteira onde a ciência e a sociedade se interpenetram na produção dos fenómenos que compõem o mundo, e dos públicos a eles associados. Recorremos às metáfora da fronteira e da cartografia. A metáfora da fronteira procura dar conta dos espaços e objetos de intersecção entre conhecimentos, indivíduos, coletivos e instituições que se constituem em dinâmicas de indagação coletiva onde a multiplicidade dos fenómenos é alvo de experimentação. A fronteira emerge como lugar do político (Rancière, 1999) ao questionar as relações entre entidades e corpos e da sua distribuição no mundo, e enquanto espaço de transgressão (Santos, 2000) que coloca em causa, indagando outras possibilidades de tradução e de assembleia do fenómeno e dos seus efeitos no mundo. A fronteira entre a ciência e a sociedade emerge como lugar de política ontológica (Mol, 2008), de exploração da multiplicidade e das escolhas possíveis nas dinâmicas de recomposição do mundo.

Ao explorar a fronteira como espaço de indagação, experimentação e produção de fenómenos e de mundo, mobilizamos a metáfora cartográfica enquanto "metodologia da fronteira" para mapear a sua multiplicidade. A cartografia enquanto método de exploração dos fenómenos reflete a produção da narrativa da indagação como indissociável da produção do fenómeno, espelhando a polifonia de vozes que participam na indagação e de entidades que compõem o fenómeno. Para isso dá conta não apenas do que existe, mas também das versões possíveis do fenómeno que existem enquanto devir, em estado latente e em potência, que a indagação revela. A cartografia procura dar conta do desdobrar de efeitos e diferenças ontológicas que a indagação coletiva cria. A produção de um relato arriscado é problematizada numa reflexão sobre o papel performativo das ciências sociais nestas indagações coletivas onde se assiste a uma recomposição do mundo (Latour, 2005).

A ecologia de dispositivos de indagação em torno da gaguez constitui o laboratório de experimentação destas dinâmicas colaborativas entre ciência e sociedade, analisando como co-realizam fenómenos, instituições, públicos e indivíduos. Este trabalho relata a emergência de uma tradução alternativa da gaguez através da articulação de conhecimentos experienciais, científicos e terapêuticos. Faz um relato da individuação (Simondon, 1992) de novas entidades associadas à emergente tradução da gaguez que se constituem como realidades colaterais (Law, 2009): uma nova subjetividade quanto ao que significa ser-se Pessoa que Gagueja, associada a um coletivo que se constitui como público deweyano vinculado à Associação Portuguesa de Gagos que, assim, se reconfigura enquanto organização de representação munida de uma narrativa ativista testada no quotidiano pelas Pessoas que Gaguejam. Finalmente, é problematizado como na indagação coletiva se constitui uma "comunidade epistémica" (Akrich, 2010) que agrega Pessoas que Gaguejam, Pais, Terapeutas da Fala, Psicólogos e outros profissionais, em torno de uma posição epistémica comum sobre a gaguez que interpela a posição hegemónica dominante na sociedade e na comunidade profissional de terapeutas da fala. A análise à ecologia de pessoas, conhecimentos, instituições que se desenvolveu em torno da gaguez propicia uma reflexão final sobre a constituição de uma "comunidade de responsabilidades", fundada num compromisso moral plural vinculado à indagação e à gaguez enquanto fenómeno múltiplo e heterogéneo, num contexto de mútuo reconhecimento e envolvimento responsivo entre os participantes.

Palavras-Chave: Gaguez, Ciência e Sociedade; Indagação Colaborativa; Fronteira; Comunidade de Responsabilidades.