CES (com)vida 2020

A Pandemia e a Cidade Cheia

Susana de Noronha

 

Num texto de cariz pessoal sobre a pandemia da COVID-19, a investigadora Susana de Noronha comenta as seguintes notícias:

Liubchenkova, Natalia. (2020). “In pictures: Deserted cities as anti-coronavirus lockdowns introduced around the globe”. Euronews.
https://www.euronews.com/2020/03/18/in-pictures-deserted-cities-as-anti-coronavirus-lockdowns-introduced-around-the-globe

Maia, Ana Marques. (2020). “EverydayCovid: o olhar de fotógrafos profissionais sobre a pandemia”. P3-Público, 19 março.
https://www.publico.pt/2020/03/19/p3/fotogaleria/everydaycovid-olhar-fotografos-profissionais-pandemia-400788
 

Não, a cidade não está vazia. Não está parada. Ela não é só feita de praça e ponte, de avenida, de rua e estrada. É feita de casa e prédio, de apartamento, de esquerdo e direito, do rés do chão ao décimo piso, de parede e janela, para lá da fachada. É feita de jardim, canteiro e vaso, terraço e varanda, de roupa lavada e estendida, do cigarro fumado no parapeito, da cinza caída. É feita do cheiro a café, da torrada quase queimada, da manteiga derretida. É feita do tacho ao lume, de testo levantado, do cozinhado insosso ou salgado, do perfume que sobe sem pisar escada. É feita de famílias inteiras, entre telhado e soalho, sobre o tecto dos outros, das vozes que crescem, dos passos dados aqui, ouvidos ali. É som de corrida, de pé pesado, do miúdo que brinca um andar abaixo, com alguma conta e medida. É corredor feito recreio, sem horário de escola, sem campainha, sem regra nem esquadro.

É feita do cão sem trela, do gato em salto, da louça caída, da porta batida, do barulho forte. É mulher que corre sem linha de partida, é ida e chegada à loja da esquina, é comprar o pão que já falta, é deitar contas à vida. É feita de gente que trabalha na mesa da sala, no sofá desbotado, em cadeira estreita, em tampo de madeira, de corpo erguido. É televisão ligada, é gargalhada, é rádio aos berros, é canção inventada no quarto do fundo. É alongamento de bailarina em chão de alcatifa, é som de piano que salta e se estica na parede vizinha. É folha de escritor, pela noite dentro, já rabiscada, é poema e letra, é início do livro. É guitarra aquecida por mãos que treinam em marquise apertada, é corda já gasta, partida e trocada. É costureira alinhavada, é professora bem ensinada, é vendedora sem montra de loja, é tasca e cozinha que vende para fora, sem mesa reservada. É feita de hospital e enfermaria, é vírus, doença, dor e cuidado, sem dia de folga, sem cadeira cheia à hora de visita, mesmo aqui ao lado.

É telefonema, é linha interrompida, é chamada em espera, é voltar ao colo dos pais pelo buraco da orelha. É ligar aos velhos, aos nossos, é deixar o pedido, que fiquem por cá, que guardem os laços, apertados em nós. É feita de abraço beijado, de cama aquecida, de persiana fechada, de banho escaldado em água corrida. É feita da manhã seguinte, abrindo a cortina, da pressa dos pássaros, das árvores que mexem, do rio que passa, da chuva em charco, do Sol que não tarda à hora marcada. A cidade está cheia de gente, está cheia de tudo! Basta abrir a portada, olhar para dentro, ver aquilo que fazem, sentir o seu mundo. Não, a cidade não está vazia. Não está parada. A cidade é feita de nós! A rua ainda é nossa, dos que ficam dentro de casa, na vila e na aldeia, no lugar sem nome e sem placa. É do sem abrigo, no beco sem saída, faz lar em cada canto, sem fechadura nem chave, tecto de vento, lençol de cartão. Mas não é do refugiado, saído e fugido da cidade desfeita, sem paragem ou passagem, sem entrada, esse tem parede e porta de arame farpado, no meio do nada. Destas palavras, nunca laves as mãos. Ainda ‘é o povo que mais ordena’, não lhe sintas a falta! Multiplica o número de todas as portas, vezes três, vezes dois. Soma-lhe a conta dos que ficam lá fora e para depois, para lá do mapa. Estamos todos aqui! Somos milhões!

 

Fig. 1 Noronha, Susana de (2020) O Número de Todas as Portas [Fotografia]



Fig. 2 Noronha, Susana de (2020) Para lá da Fachada [Fotografia]